Vivian Berto
Patricia Sant’Anna
Uma polêmica entrou em pauta no universo da moda há algumas semanas, referente a coleção-cápsula da marca Lança Perfume, do grupo catarinense La Moda. Com o tema “Noite em Berlim”, a grife uniu as cores e silhuetas de inspiração militar (uma tendência confirmada do ano anterior) às referências da cidade de Berlim – que poderia dar um tom de contemporâneo forte, já que é uma das cidades mais descoladas da Europa). Só que esta mistura não falou sobre a tendência militarista rebelde (que era a leitura da tendência em pauta por todos os outros que usaram essa referência), ou uma Berlim que é um dos principais epicentros da cultura jovem ou artística contemporânea, portanto, miscigenada, questionadora etc. Pelo contrário, a mistura é claramente guiada pelo ambiente nazista, não a coleção toda, é verdade, mas há uma considerável quantidade de peças com essa referência, que se quer deveria ter entrado na pauta em pleno século 21!
As criações em vestuário, por exemplo, bebem nos uniformes do Terceiro Reich (1933-1945). Infelizmente, não há como negar essa inspiração na fatídica coleção. Veja as imagens abaixo.
Acima a direita: oficial do Terceiro Reich; a esquerda a ‘criação’ da Lança Perfume; abaixo uma cena do filme ‘Suíte Francesa’ em que vemos o quanto contemporaneamente o cinema nos demonstra como eram os uniformes dos oficiais nazistas.
Um símbolo muito usado foi a Cruz de Ferro, a mais alta condecoração militar alemã, que existe até hoje, que foi concebida antes mesmo da existência da Alemanha enquanto país, mas que o grande público reconhece como símbolo nazista, devido a filmes e séries ambientados na segunda guerra mundial.
A La Moda justificou o uso da Cruz de Ferro como leitmotiv em nota:
“A Cruz de Ferro foi instituída pelo Rei da Prússia ainda no século XVIII para homenagear os soldados prussianos que se destacassem por bravura no campo de batalha. Já em 1871, quando a Alemanha foi formada, ela passou a ser adotada pelo exército alemão, e assim o é até hoje. Não é um elemento nazista, portanto.”
A empresa não levou em consideração a leitura cultural que o país em que está – e no qual comercializa – faria. O responsável pela pesquisa de moda não pode ignorar a leitura que o público terá sobre o símbolo – nem entraremos em debates de semiótica – independente da maneira como ele pode ser compreendido fora de nosso país. Por exemplo, a própria suástica não tem sua origem no mundo nazista, mas há como não vinculá-la ao significado após à segunda guerra mundial?
Para agravar ainda mais, toda produção de imagem de moda, ou seja, styling e a comunicação da coleção só fez piorar, pois são claramente inspiradas em um gosto cinematográfico publicitário nazista, à melhor maneira de Leni Riefenstahl – a aclamada e amada cineasta dos valores nazistas (gosto fascista pelo rigor e controle) que Hitler adorava, como podemos exemplificar com os filmes ‘Olympia’ e ‘Triumph des Willens’.
Para fechar sobre os itens a serem verificados, mas não menos importante, no país da diversidade étnica, todas as modelos eram brancas, preferencialmente de cabelos lisos e loiras. Isto é facilmente lido simbolicamente pela maioria das pessoas: arianas como padrão de beleza… Aí de novo a pulga – grita – atrás da orelha: Ninguém percebeu isso em toda La Moda?
Há outras referências na coleção, é verdade, como anunciado em outro trecho da declaração pública da marca, e que são mais felizes do ponto de vista das referências, mas não há como essas imagens nazistas serem ignoradas. Fica difícil ignorar os momentos nos quais o uniforme nazista é citado – não à toa, gerando desconforto e revolta a ponto de a marca tirar os produtos das lojas e as fotos do catálogo do ar.
As questões que levantamos são: Como essa coleção foi concebida e como tais imagens foram construídas para a coleção da Lança Perfume e ninguém na empresa se alertou para a problemática ética? Não é preocupante uma série de equipes profissionais (equipe de estilo, marketing, comunicação, relações públicas, e a direção da empresa) não perceber que as imagens tinham uma leitura obviamente nazista? Que a segunda grande guerra está presente na memória das pessoas, no imaginário popular e na mídia (por meio de filmes, fotografias, programas de TV etc.)? Em tempos de debates sobre o papel de inclusão da moda, da diversidade de belezas, questionamentos sobre a ética, como é possível uma marca criar uma imagem que remeta à Alemanha de Hitler? Em nosso país a propaganda nazista é condenada juridicamente, como deixaram isso passar?
A importância da pesquisa
Uma das respostas poderia ser: há problemas graves na pesquisa de moda. Esta exige crivo crítico de quem as faz. Não basta usar as formas, as texturas e as cores que surgem do trabalho de pesquisa, mas é importante saber relacioná-las, cruzar informações umas com as outras e, sobretudo, quais as possíveis leituras do público sobre os temas a serem tratados. As imagens carregam suas histórias, significados, se transformam ao longo do tempo. Ter uma visão crítica sobre o percurso histórico das imagens é essencial para utilizá-las como referência. Isso evita unir dois temas possíveis de se relacionarem, mas que gerou um resultado politicamente incorretíssimo: militarismo da segunda guerra e a Berlim do Terceiro Reich.
A Lança Perfume achou que “acertaria”, simplesmente porque juntou uma “tendência” confirmada com a referência da “cidade do momento”. Erro crasso, porque tocou numa ferida que ainda não se fechou para alemães, ou para qualquer pessoa que conheça a história da segunda guerra mundial. Demonstrou que suas equipes são alienadas e não se conectam com o debate contemporâneo do que acontece no mundo todo, incluindo no país em que estão.
Em determinado trecho da nota explicativa é citado que foi feita uma ‘ampla pesquisa’ para que se chegasse ao tema. Temos que nos lembrar, como já dito, que a pesquisa de referência de imagens não é suficiente para uma coleção de moda. Afinal, não fabricamos roupas, sapatos e acessórios: produzimos bens simbólicos. Criamos e colocamos no mundo a possibilidade de expressão e construção de aparência do consumidor. Mais do que as imagens como simplesmente imagens, temos que nos ater ao poder simbólico que carregam. Mesmo que a história da Cruz de Ferro remeta ao império da Prússia, ao continuar sendo usada no nazismo ela se carregou de sua simbologia (não nos esqueçamos que o nazismo foi um mestre da propaganda – dirigida por Joseph Goebbels, presente nos filmes épicos de Leni Riefenstahl – por isso não admira que suas imagens sejam tão presentes ainda hoje). Além disso, não é à toa que a Alemanha de Hitler continuou com o símbolo da Cruz, uma vez que a supremacia do “povo alemão”, da “raça” daquele país diante de outras, compreendidas por esse grupo como “inferiores”, era ressaltada no Terceiro Reich. A Cruz de Ferro, desde 1955, é símbolo das Forças Armadas germânicas, como disse o comunicado da grife. Porém, seu modo de uso foi transformado e adaptado – suas pontas foram cortadas, tirando toda a aparência de medalha ou condecoração, por exemplo. A cor oficial se tornou o azul, branco e/ou cinza. Tudo para despir o símbolo de suas referências ao Terceiro Reich. De qualquer forma, poderíamos ainda questionar a associação direta de uma marca de moda com elementos de forças armadas (de qualquer país) na contemporaneidade.
Vamos ver como é quando um designer faz a lição de casa: lembremos da coleção Métiers d’Art que a Chanel criou em homenagem à Alemanha, desfilada em Hamburgo em dezembro de 2017. Certamente essa coleção, de pre-fall 2018 (provavelmente foi vista como referência pela Lança Perfume). Karl Lagerfeld, ele mesmo um alemão, diretor criativo de uma grife cuja criadora, teve relações muito próximas com o Reich, estava certamente em terreno movediço. Nas criações de Lagerfeld para Chanel, há um perfume do militar do Reich, mas ele subverte com texturas, cores e símbolos da casa Chanel, bem como com referências à resistência francesa (lãs amplas, bolsa que lembram um acordeão etc.). As modelos são multiétnicas, há loiras, é verdade, mas também morenas, negras, asiáticas etc. O styling também quebrou o estilo do Reich – severo, geométrico, totalitário – dando um ar descontraído, casual e contemporâneo à coleção.
A Segunda Guerra é ainda hoje uma vergonha para a Alemanha, e a memória, principalmente, dos campos de concentração e o genocídio contra judeus, ciganos e homossexuais (e todos que fossem contra o modelo político totalitário de Hitler, incluindo alemães arianos) está ainda muito presente. Também com um pé no militarismo, a inspiração de Lagerfeld decidiu passar pelas referências navais, e âncoras, timões decorados e os ‘Cs’ entrelaçados (logo da marca) foram as únicas medalhas admitidas, adornando os quepes das modelos. A decisão por tecidos leves e transparentes, além de malhas grossas e soltas, junto ao sempre presente tweed, ajudaram a tirar o aspecto estruturado do militar. Não há verde-oliva, nem a tríade banco-preto-vermelho. A referência militar mais direta é um sobretudo cinza, que é neutro o suficiente para se passar como algo não obviamente nazista. Mesmo se houveram críticas à coleção de inspiração alemã (não encontramos nenhuma), não foi nada que tenha tomado grandes proporções. Isso mostra um cuidado muito grande de Lagerfeld e sua equipe. Certamente a incerteza com o tema de pesquisa espinhoso veio à tona no processo. Escolher como trabalhá-lo é função do designer.
Isto demonstra que a prática da cópia alienada, a soma de referências sem pensar a respeito, não criam automaticamente a prática do sampler, afinal, esse tipo de união de ‘coisas prontas’ só vira poesia, se você une de maneira subversiva, e cria sobre o que já foi colocado no mundo, aí há criação, fora isso, é um simples ‘copy-paste’ que revela apenas preguiça criativa. Isso não é um sampler. A profissão designer exige que a pessoa tenha este olhar mais fino e o repertório mais amplo. Só assim este consegue perceber as nuances entre a boa criação e um produto ofensivo.
Daí levantamos mais uma questão: Como estão sendo formados os designers atualmente? Será que tem formação crítica o suficiente? Como são ensinadas as disciplinas de repertório – história da arte, da moda e do design, semiótica, antropologia, sociologia, filosofia, estética etc.? Muitas faculdades passaram a dar o conteúdo teórico de maneira falha, ou colocam mais de 30 alunos em sala de aula, ou transformam tudo o que é teórico em ensino à distância (EAD). Isso gera um problema fundamental: a teoria não é somente um monte de conceitos e histórias que precisam ser decorados, antes deveria ser espaço de debate, de questionamento. Mas como criar debates em salas com mais de 50 alunos? Como pedir trabalhos elaborados e interessantes para turmas de 100 alunos? De que maneira fomentar o pensamento crítico quando a maioria dos alunos não terá contato com o professor a não ser por um vídeo e um chat? E há ainda mais uma problemática, decorrente desta indicada: Como é ensinada a pesquisa de moda nas faculdades? Primeiro, grande parte dos cursos ditos de Design de Moda são Tecnólogos, portanto, não é exigido fazer pesquisa. Segundo, faculdades particulares, com raras exceções, não fomentam entre os alunos a iniciação científica, muitos alunos desejam e buscam seus professores para fazê-la, mas há muitos empecilhos ‘inventados’ para que os alunos simplesmente não façam pesquisa. Além disso, raras são as grades que possuem uma disciplina voltada para Pesquisa de Moda em específico. Portanto, como criar designers com visão ampla, crítica e empática, se as instituições só prezam em dar instrumentais técnicos de práticas profissionais?
A formação deficitária pode ser apontada como um dos problemas, mas ela não está sozinha. É preciso também discutir a sensibilidade que os designers precisam ter – a tão propalada “empatia” das palestras motivacionais e cursos de escolas criativas – sim as pessoas pagam para aprender sobre empatia, algo que deveria ser um valor básico humanista.
Sensibilidade de pesquisa
Quando um conceito é falado em excesso, podemos desconfiar que, no mundo prático, ele se encontra em falta. É o caso da empatia, propósito, etc. No contemporâneo, no qual a comunicação acelerada, constantemente mediada e em rede – e, sem dúvida, mais democratizada – as imagens são colocadas para circular em grupos cada vez mais heterogêneos, consequentemente, o cuidado com as imagens produzidas que marca coloca no mundo deve ser constante, atento e crítico.
Se estamos falando cada vez mais de diversidade, o respeito, convívio e tolerância com quem é diferente devem ser prioridades. Para as empresas não é diferente. A lembrança vaga do Terceiro Reich pode não ofender pessoas brancas, descendentes diretos de europeus não-judeus. Mas para todos que são descentes de judeus e ciganos (ou que são de alguma minoria, como pessoas que são de afrodescendentes e indígenas, por exemplo), é um soco no estômago. É extremamente ofensivo, dolorido, ver uma marca de moda, de ampla atuação em nosso país, referenciar o nazismo.
Além do problema de formação já identificado, as empresas de moda necessitam tomar cuidado com o “bairrismo” às quais muitas delas, principalmente as grandes, submetem suas equipes. Estar absorvido na rotina da empresa de tal maneira que 10, 12, 14 horas por dia seus funcionários estejam focados apenas nos processos internos e sem poder “respirar” outros ares, faz com que os designers esqueçam do mundo exterior e suas demandas – justamente para quem eles deveriam criar, não é um contrassenso? Além disso, olhem para suas equipes, quantas pessoas negras, deficientes, indígenas (ou descendentes), refugiados, trans etc. Vamos mais profundamente e perguntamos: quantas pessoas não são desta região? Qual o acesso dos pesquisadores da empresa a rodarem o país e conhecerem a miríade de manifestações culturais que existem em nosso país? Embora pouco se cumpra, vale sempre a pena dizer: equipes mais diversas pensam de maneira mais inteligente.
Trazer experiências de vida diferentes é fundamental para a criação tolerante e empática. E, portanto, mais efetiva e vendável. Sim, vendável! Por serem autocentradas demais, com experiências muito similares, muitas vezes isoladas e com pouca variedade cultural de pessoal interno, as empresas se tornam menos competitivas em termos criativos. Por exemplo, a falta de pessoas negras em equipes de criação (e em empresas de moda no geral) é algo notório no mundo da moda, em especial no Sudeste e Sul do país. Também destacamos que no mundo profissional da moda, povoado por mulheres por todos os lados, há uma notável falta de mulheres em cargos de liderança, o que criam o efeito “homem-branco-hétero”. O que isso significa? É o mundo do Mesmo – para usar o termo da historiadora Tania Navarro-Swain –, no qual apenas uma visão de mundo é considerada, e trata-se de uma visão dominadora, fechada em si mesma, excludente e que, pior, se considera a única. Também é responsabilidade das empresas de moda construir um mundo mais diverso – afinal, não falamos tanto de “moda com propósito”?
Percebemos que essa coleção da Lança Perfume demonstrou todas as falhas do mundo da moda brasileiro de uma só vez:
Formação ruim de nossos designers;
Necessidade de superar a prática do ‘copy-paste’ e soma alienada como método de ‘fazer’ uma coleção de moda;
Urge que as empresas assumam sua responsabilidade na formação contínua dos seus colaboradores;
Precisamos ter mais diversidade, contendo pessoas de várias origens étnicas, posicionamentos sociopolíticos e regiões do país;
E, por último, mas talvez a mais importante: fomentar mais lideranças femininas nas empresas de moda.
Sanando essas problemáticas, podemos ter um cenário mais digno de trabalho, mais competitivo nacional e internacionalmente, mais empático, e realmente com propósito: entregar uma moda digna e respeitosa para todos.
Para ler (sim, nós indicamos bibliografia, porque acreditamos em uma visão crítica que é feita de teoria e prática):
Sobre esse mesmo tema vale a pena ler o texto de Frederica Richter, no blog Fashion Law & Luxo, que avalia o tema do ponto de vista jurídico.
Indicamos, para não ser alienado sobre o que foi e o que significa o nazismo e toda e qualquer forma de organização totalitarista, o brilhante livro de Hannah Arendt: ARENDT, Hannah. As origens do totalitarismo – antissemitismo, imperialismo, totalitarismo. São Paulo: Companhia de Bolso, 2013
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