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Moda: arte, design ou business?

Atualizado: 4 de jun. de 2022

Patricia Sant'Anna


Exposição “Christian Dior: Designer de Sonhos”, realizada entre julho de 2017 e janeiro de 2018, no Museu de Artes Decorativas de Paris, França

A imagem acima, da exposição sobre a história da maison Dior, ocorrida em 2017-18, talvez seja uma ótima imagem para resumir o meu fascínio e porque minha decisão de trabalhar com moda se deu tão cedo em minha vida. A maison Dior une: estética (os padrões de beleza), a criação de um estilo (design) e negócios bem administrados que sobreviveram a guerras, conflitos, crises sociais, culturais e econômicas. Tudo reunido em uma maison de haute couture, aí você pode pensar: "mas é algo tão elitista e distante dos brasileiros?". Sim, é verdade, mas nela temos um caso exemplar, que reune tudo o que vamos discutir sobre moda aqui.


Moda é expressão cultural

Vamos primeiro entender que moda é uma manifestação cultural que acontece na dinâmica (e tensão) indíviduo-sociedade. Portanto, toca tanto em aspectos pessoais, psicológicos, subjetivos, mas também em aspectos culturais, econômicos e sociais que vão da pequena a grande escala. Ou seja, a moda fala sobre conflitos cotidianos e também daqueles que são amplos e profundos. Tendo em vista isso, vou contar um pouco a respeito da minha relação com a moda, como ela nasceu e se aprofundou, se tornou paixão, amor, estudo, objeto de pesquisa, profissão e realização profissional.


Primeiro, o que me tocou na imagem da exposição da Dior foram essas silhuetas das peças. Essas silhuetas foram inicialmetne apresentadas para mim como o padrão de beleza, pela minha mãe, quando eu ainda era criança. Ela me contava - e mostrava em fotos antigas - que quando era jovem, ela tinha um grande fascínio pelos figurinos de cinema, o que a faziam repetidamente copiar os modelos cinematográficos por meio das costureiras, forrar sapatos com os mesmos tecidos, e ganhar o mundo pelas ruas de São José dos Campos (interior de São Paulo, na época, uma cidade pequena, de sanatórios de tuberculosos, sem a importância econômica que hoje ela tem).


Se olharmos com cuidado histórico, sabemos que a moda da época era regida pela Europa, mas no Brasil, boa parte da população recebia essas informações via o cinema estadunidense. E não chegava imediamente como hoje, estamos falando das décadas de 1950 e 1960, no Brasil, sem internet, com pouquíssimas televisões, cinema relativamente atrasado, em relação aos lançamentos do hemisfério norte, jornais e rádios. Sim, muitas vezes o que a minha mãe acreditava ser a moda dos anos sessenta, era para a referencial Paris, uma moda ultrapassada, dos anos cinquenta. Eu assistia aos filmes, que ela gostava tanto, via suas fotos de juventude, e absorvia esses referenciais.


Depois, veio a minha vontade de aprender a fazer roupas, fiz cursos de corte e costura variados, gostava de desenhar as roupas que, as vezes, mandava fazer, as vezes, eu mesma fazia. Tinha acesso raro a algumas revistas Burda velhas, mas que eu devorava para aprender como fazer e como sonhar as roupas. O que eu descobri, que fazer roupa era um negócio complicado e que exigia, além de saber lidar com cores e texturas, muita matemática, muito 'desenho geométrico', para pensar em 2D algo que eu ia construir, por meio da costura em 3D.


A icônica capa verde e amarela da primeira revista Elle no Brasil (1988), pouquíssimo conteúdo nacional, tudo a partir e sobre o olhar francês, ou melhor, parisiense da revista. Foi aqui que comecei a aprender sobre moda internacional

E, então em 1988, a revista Elle chega ao Brasil. Finalmente teríamos uma revista de moda, e não uma revista de moldes (sem ofender as queridas Manequim e Moda Moldes, pois aprendi muito com elas, sobretudo a parte técnica, e é incrível o quanto elas entregavam algo de categoria altíssima). Já existia a Moda Brasil que era dificílima de encontrar no interior de São Paulo, uma revista da editora Rio Gráfica, que saiu de circulação no final de 1990 para que a Marie Claire pudesse entrar no mercado editorial nacional. A primeira década da Elle no Brasil foi muito importante para minha formação em moda, afinal, como elas eram praticamente traduções das edições francesas, eu simplesmente fui alfabetizada no 'quem é quem' do mundo da moda internacional por meio desse periódico. Com a ela eu aprendi muito da dimensão simbólica da moda.


Com o tempo, fazendo cursos aqui e acolá, ia aprendendo mais e mais sobre moda, estilismo, corte, costura, modelagem, produção de moda etc. Chegou o momento de fazer vestibular e eu optei por fazer Ciências Sociais, já que no auge da inflação era impossível fazer a única faculdade de moda no país (recém aberta) e particular. Fiz Ciências Sociais na Unicamp, e moda, ou melhor as revistas de moda foram meu primeiro objeto de estudo na graduação e mestrado. Tanto que esses estudos deram origem à minha dissertação de mestrado, em Antropologia: Desfile de imagens : um estudo sobre a linguagem visual das revistas de moda (1990-2000) (disponível em PDF). Trata-se de um estudo sobre a linguagem visual das revistas Elle, Vogue e Marie Claire frente à moda, publicadas no Brasil.


A moda já tinha me fascinado enquanto um fênomeno cultural e estético. Para tanto, vale conferir o texto que escrevi para a Revista da SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência), no qual, tento descrever e demonstrar a maneira como compreendo a moda do ponto de vista de minhas formações em Antropologia e História da Arte. O texto chama-se Moda: uma apaixonante história das formas. E nele fica claro como compreendo a moda como uma estética do cotidiano, uma forma sensível com a qual as pessoas se comunicam e são comunicadas, na qual estabelecem uma relação e uma compreensão do que acontece à sua volta por meio das formas propostas pelas roupas. Essas propostas podem ser sedutoras, confortáveis, seguras, provocantes, enganosas, descuidadas, brincalhonas, aguerridas, politizadas, alienadas, mas nunca neutras. Afinal, dizer que não liga para moda, é um jeito de dizer o que é a moda dentro do seu espectro sociocultural.


A moda te posiciona no mundo, naquele exato momento que você tem algum confronto com o social, seja presencial ou digital

Mas foi no doutorado, estudando história da moda, como parte da história da arte, que enfrentei dois debates que hoje, pelo menos para mim, estão bem resolvidos. O primeiro é a relação arte e moda, o segundo é moda como área do design. Na introdução do doutorado retomei os teóricos e os exemplos históricos dessas conexões, para as compreender. E hoje para mim, a moda é uma expressão estética independente da arte, que pode ou não receber o status de arte, mas que é, por si só algo pertinente esteticamente. Lembro-me como fiquei aliviada quando ouvi o Ricardo Oliveros falar, em uma palestra no MAM SP, que tinha que parar de gastar tanta energia em querer ser reconhecida como arte, afinal, ela tem seu próprio campo. Algo como "a moda não vai ser arte quando crescer!". Na hora pensei: ufa! não estou sozinha nesse mundo! Isso não quer dizer que a moda não tenha que ser esteticamente desafiadora, até mesmo conceitual. Pelo contrário, isso é o que dá o brilho nos olhos das pessoas. Mas sabemos que no cotidiano, as roupas também precisam funcionar, e mesmo suprir outras necessidades das pessoas que as usam (e não estou falando só de proteger do frio ou do calor).



Ainda nos debates teórico-críticos feitos no doutorado (para quem se interessar, o nome da tese de doutoramento é Coleção Rhodia: arte e design nos anos sessenta no Brasil, é só clicar no título que você tem acesso a ela pela Unicamp) mergulhei no processo de formação da área de design no mundo, do ponto de vista da formação (pedagogias), do poquê e como surge, as necessidades, o pensamento de projeto etc. isso fez perceber que sim, a moda deve e é, hoje em dia, em grande parte uma área do design. Mas não só. Ela guarda ainda processos que são acadêmicos (como a imitação e cópia como processo de aprendizado), técnicos e tecnológicos com mentalidade e abordagem da engenharia, enfim, a moda é uma área híbrida, que transpassa da arte até a engenharia, ao mesmo tempo em que não é nenhuma delas, mas precisa do diálogo e seus olhares e abordagens para conseguir dar seus próximos passos. A moda é transdisciplinar, e isso não é nenhum demérito.


Rei Kawakubo, ela define, contemporaneamente aquilo que Dior conseguiu em meados do século XX: uma moda autoral, criativa, mas que é um business super bem sucedido.

E o mercado? Como fica nessa área transdisciplinar? O mercado de moda é uma área complexa por conta disso. Você pode ter um império e ser altamente experimental e artístico como é o caso do que Rei Kawakubo fez com sua Comme des Garçons. Ou ser pragmático e ouvir de perto o que o público popular deseja, como os hipermercados fazem. Há espaço para quem quer ter um pequeno ateliê de roupas sob encomenda, para quem quer ser uma modista, para quem quer ter uma oficina prestadora de serviço (as famosas oficinas terceirizadas), para criadores de estampa e para estamparias etc. O campo da moda, do ponto de vista do mercado, é amplo, múltiplo, atende do luxo ao popular sem pudores. Com a internet passou a atender nichos, micronichos, locais distantes, desejos específicos, ao mesmo tempo em que continua atendendo grandes demandas e distribui a moda standartizada com facilidade.



A moda é uma manifestação do capitalismo, gostemos disso ou não. Sabendo de antemão que a moda é a cultura vestimentar de quem vive dentro da lógica capitalista (e estamos falando de um processo histórico do qual não há como negar). Podemos nos perguntar: "Será que moda pode, ou mesmo consegue, ser crítica ao sistema capitalista?" Lógico que consegue, ao mesmo tempo que é um dos maiores símbolos deste sistema econômico e sociocultural. Para exemplificar temos movimentos e propostas que debatem e propõem formas diferentes de se construir a aparência àquelas vigentes desde o início do século passado - sim, ser crítico a moda não é nenhuma novidade - (quer conhecer e entender isso? O melhor livro sobre o assunto é o de Radu Stern, Against Fashion – Clothing as Art 1850–1930, além de falar sobre o assunto de maneira didática, ainda coloca os documentos da época para conhecermos, um primor!) Mas a moda tem a capacidade de absorver a crítica rapidamente, e convertê-la em produto (mas, vale lembrar, nem toda antimoda vira moda). Sim, isso é verdade, veja o movimento hippie, ou punk, nascem como antimoda, e hoje não só são referências, como há inúmeros estilos (isto é padrões estéticos rapidamente reconhecidos) que provém destes dois movimentos de antimoda.


A moda é tão plástica, é tão facilmente moldável, que antes da pandemia, já estava plenamente nos ambientes digitais, não mais como experimentação, ou 'coisa de geek', mas com produtos e serviços. Sim, já há um mercado estruturado de roupas digitais garantidas por NFTs vendidas por preços que a grande população não entende como são formados (é especulação ou é valorização estética?). Vale conhecer, e tentar entender como funciona acessando o site da The Fabricant, por exemplo.


Ao mesmo tempo, a moda se adequa a multiplicidade de seus consumidores. Por exemplo, há uma crescente e inevitável de consumidores que são conscientes do ponto de vista da sustentabilidade. E este número não é pequeno. Assim, vemos cair por terra o preconceito com roupas de segunda mão. Pelo contrário, hoje, temos, brechós especializados (em moda infantil, em moda de grife, em moda vintage etc.) e, está chegando em um ponto de ser visto como um bom negócio, até mesmo para os grandes players de moda fast fashion. Por exemplo, a pouco tempo a Renner comprou o brechó digital Repassa e Arezzo & Co. comprou a TROC. Repassa e TROC são sites de vendas de roupas de segunda mão que em pouco tempo de existência não só cresceram, como conseguiram investidores, foram comprados por importantes players de moda do país. Portanto, esqueça a ideia do brechó como um lugar entulhado de coisas velhas. Hoje em dia, eles são organizados, vendem roupas que estão em ótimo estado, oferecem custo-benefício e prolangamento no uso de um produto que seria descartado. Caso estejamos falando de loja física, com certeza o brechó terá um PDV planejado, com VM pensado para te informar e seduzir, da mesma maneira que qualquer outra loja de moda, veja, por exemplo, o brechó Incomoda Brechó e Butique.


Ficou interessada(o) em montar um brechó? Clique na imagem que você será redirecionado para o site do Sebrae sobre o assunto. Ou fale conosco, já modelamos negócios de moda de segunda mão, temos experiência e cases de sucesso em nosso histórico.

O que todos esses exemplos mostram a você? Primeiro, que a moda se molda àquilo que as pessoas querem expressar esteticamente sobre seus corpos para os seus pares (e estes hoje são mais variados do que há 10 ou 20 anos atrás, pode ter certeza). Segundo, que é tentar fechar a moda dentro da arte, do design, ou dos negócios, pode ser uma forma de tentar simplificar algo que não é simples. A moda é complexa, como a sociedade em que vivemos. Ela precisa do diálogo com a arte para ser experimental e propor formas das pessoas se expressarem que são melhores e mais adequadas à contemporaneidade do que existia antes. Ela está imersa no campo do design por uma questão de como pensar o seu processo de criação e desenvolvimento de produtos, sobretudo, quando falamos em produção em escala. Terceiro, assim, como qualquer outra área do design, a moda sana problemáticas cotidianas, e o pensamento projetivo nos ajuda criar as melhores soluções vestimentares (pensando a vestimenta como tudo o que constrói a aparência). E a moda não consegue viver sem o mercado, ele está no início e no final de todo o processo. Ele é o motivador mais forte. Afinal, o consumo não é só um processo alienado. O consumo é uma manifestação que parte do indíviduo e o conecta ao social. É por ele que as pessoas, em nossa sociedade, falam sobre suas crenças, valores e visões de mundo. A moda não é qualquer consumo, ela talvez seja o mais relevante, pois é, ao mesmo tempo, íntimo (está sobre os corpos de cada um de nós) e público (expondo e protegendo cada um nas selvas sociais às quais nos metemos).


A moda nos permite mostrar e esconder o que quisermos, de nossos corpos às nossas ideias

Afinal, a moda é arte, design ou business? Moda é moda. Trata-se de uma manifestação estética cotidiana (presencial e digital), que resolve problemáticas práticas (e tácitas) como proteção das intempéries naturais (chuva, vento, sol etc.), mas também resolve desafios individuais e socioculturais (a quais grupos as pessoas querem se ver identificadas, quais as referências que elas querem que leiamos nelas etc.). Moda é negócio grande em nosso país (um dos poucos no mundo com toda a cadeia/rede criativa-produtiva atuando em todo o território nacional), que gera emprego, capital e processos de interação e autoafirmação super importantes (não vamos falar sobre decolonidade neste texto, mas em breve com certeza sairá um textinho sobre o tema do forno).



A moda é complexa, e tentar simplificá-la em quaisquer das áreas (que também são complexas, mas com intenções e existências diferentes da moda) é tentar tomar um atalho que não vai ajudar a compreendê-la. Você está vendo este gif acima, com um desfile de Rick Owens, de 2015, em que mulheres carregam corpos de outras mulheres como parte do vestuário. Pois bem, as peças de vestuário em si, são incríveis, mas esta performance configura a elas, mais algumas camadas de significado, que geram debates, mas também geram maior valorização no mercado... a cada desfile, a cada lançamento, a cada fotinha no instagram de uma marca que você tromba de maneira ocasional, pense sobre o que significa essa imagem de moda e porque você quer adquirir aquela peça/look. Isso é compra consciente do ponto de vista da arte, design, consumo, e mercado. E o mundo agradece.










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